A educação moderna exagerou no culto à autoestima – e produziu
adultos que se comportam como crianças. Como enfrentar esse problema é o tema
da reportagem a seguir, publicada na revista Época.
Os alunos do 3º ano de uma das melhores escolas de ensino médio
dos Estados Unidos, a Wellesley High School, em Massachusetts, estavam reunidos
numa tarde ensolarada para o momento mais especial de sua vida escolar: a
formatura. Com seus chapéus e becas coloridos e pais orgulhosos na plateia,
todos se preparavam para ouvir o discurso do professor de inglês David McCullough
Jr. Esperavam, como sempre nessas ocasiões, uma ode a seus feitos acadêmicos,
esportivos e sociais. O que ouviram do professor, porém, pode ser resumido em
quatro palavras: vocês não são especiais. Elas foram repetidas nove vezes em 13
minutos. "Ao contrário do que seus troféus de futebol e seus boletins
sugerem, vocês não são especiais", disse McCullough logo no começo.
"Adultos ocupados mimam vocês, os beijam, os confortam, os ensinam, os
treinam, os ouvem, os aconselham, os encorajam, os consolam e os encorajam de
novo. (…) Assistimos a todos os seus jogos, seus recitais, suas feiras de
ciências. Sorrimos quando vocês entram na sala e nos deliciamos a cada tweet
seus. Mas não tenham a ideia errada de que vocês são especiais. Porque vocês
não são".
O que aconteceu nos dias seguintes deixou McCullough atônito. Ao
chegar para trabalhar na segunda-feira, notou que havia o dobro da quantidade
de e-mails que costumava receber em sua caixa de entrada. Paravam na rua para
cumprimentá-lo. Seu telefone não parava de tocar. Dezenas de repórteres de
jornais, revistas, TV e rádio queriam entrevistá-lo. Todos queriam saber mais
sobre o professor que teve a coragem de esclarecer que seus alunos não eram o
centro do universo. Sem querer, ele tocara num tema que a sociedade estava
louca para discutir – mas não tinha coragem. Menos de uma semana depois,
McCullough fez a primeira aparição na TV. Teve de explicar que não menosprezava
seus jovens alunos, mas julgava necessário alertá-los. "Em 26 anos
ensinando adolescentes, pude ver como eles crescem cercados por adultos que os
tratam como preciosidades", disse ele à revista Época. "Mas, para se
dar bem daqui para a frente, eles precisam saber que agora estão todos na mesma
linha, que nenhum é mais importante que o outro".
A reação ao discurso do professor McCullough pode parecer apenas
mais um desses fenômenos de histeria americanos. Mas a verdade é que ele tocou
numa questão que incomoda pais, educadores e empresas no mundo inteiro – a
existência de adolescentes e jovens adultos que têm uma percepção totalmente
irrealista de si mesmos e de seus talentos. Esses jovens cresceram ouvindo de
seus pais e professores que tudo o que faziam era especial e desenvolveram uma
autoestima tão exagerada que não conseguem lidar com as frustrações do mundo
real. "Muitos pais modernos expressam amor por seus filhos tratando-os
como se eles fossem da realeza", afirma Keith Campbell, psicólogo da
Universidade da Geórgia e coautor do livro Narcisism epidemic (Epidemia
narcisista), de 2009, sem tradução para o português. "Eles precisam
entender que seus filhos são especiais para eles, não para o resto do
mundo".
Em português, inglês ou chinês, esses filhos incensados desde o
berço formam a turma do "eu me acho". Porque se acham mesmo. Eles se
acham os melhores alunos (se tiram uma nota ruim, é o professor que não os
entende). Eles se acham os mais competentes no trabalho (se recebem críticas, é
porque o chefe tem inveja do frescor de seu talento). Eles se acham merecedores
de constantes elogios e rápido reconhecimento (se não são promovidos em pouco
tempo, a empresa foi injusta em não reconhecer seu valor). Você conhece alguém
assim em seu trabalho ou em sua turma de amigos? Boa parte deles, no Brasil e
no resto do mundo, foi bem-educada, teve acesso aos melhores colégios, fala
outras línguas e, claro, é ligada em tecnologia e competente em seu uso. São
bons, é fato. Mas se acham mais do que ótimos.
A expectativa exagerada dos jovens foi detectada no livro
Generation me (Geração eu), escrito em 2006 por Jean Twenge, professora de
psicologia da Universidade Estadual de San Diego, nos Estados Unidos. No
trabalho seguinte, em parceria com Campbell, ela vasculhou os arquivos de uma
pesquisa anual feita desde os anos 1960 sobre o perfil dos calouros nas
universidades. Descobriu que os alunos dos anos 2000 tinham traços narcisistas
muito mais acentuados que os jovens das 3 décadas anteriores. Em 2006, dois
terços deles pontuaram acima da média obtida entre 1979 e 1985. Um aumento de
30%. "O narcisismo pode levar ao excesso de confiança e a uma sensação
fantasiosa sobre seus próprios direitos", diz Campbell. Os maiores
especialistas no assunto concordam que a educação que esses jovens receberam na
infância é responsável por seu ego inflado e hipersensível. E eles sabem disso.
Uma pesquisa da revista Time e da rede de TV CNN mostrou que dois terços dos
pais americanos acreditam que mimaram demais sua prole.
Sally Koslow, uma jornalista aposentada, chegou a essa conclusão
depois que seu filho, que passara 4 anos estudando fora de casa e outros dois
procurando emprego, voltou a morar com ela. "Fizemos um superinvestimento
em sua educação e acompanhamos cada passo para garantir que ele tivesse sua
independência", diz ela. "Ao ver meu filho de quase 30 anos andando
de cueca pela sala, percebi que deveria tê-lo deixado se virar sozinho".
Que criação é essa que, mesmo com a garantia da melhor educação e sem falta de
atenção dos pais, produz legiões de narcisistas com dificuldade de adaptação?
Os estilos de criação modernos têm em comum duas características. A primeira é
o esforço incansável dos pais para garantir o sucesso futuro de sua prole – e
esse sucesso depende, mais do que nunca, de entrar numa boa universidade e
seguir uma carreira sólida. Nos Estados Unidos, a tentativa de empacotar as
crianças para esse modelo de vida começa desde cedo. Escolas infantis
selecionam bebês de 2 anos por meio de testes. Isso acontece no Brasil também.
No colégio paulista Vértice, um dos mais bem classificados no ranking do Enem,
há fila para uma vaga no jardim da infância.
O segundo pilar da criação moderna está na forma que os pais
encontraram para estimular seus filhos e mantê-los no caminho do sucesso:
alimentando sua autoestima. É uma atitude baseada no "movimento da autoestima",
criado a partir das ideias do psicoterapeuta canadense Nathaniel Branden, hoje
com 82 anos. Em 1969, ele lançou um livro pregando que a autoestima é uma
necessidade humana. Não atendida, ela poderia levar a depressão, ansiedade e
dificuldades de relacionamento. Para Branden, a chave para o sucesso tanto nas
relações pessoais quanto profissionais é nutrir as pessoas com o máximo
possível de autoestima desde crianças. Tal tarefa, diz ele, cabe sobretudo a
pais e professores. Foi uma mudança radical na maneira de olhar para a questão.
Até a década de 1970, os pais não se preocupavam em estimular a autoestima das
crianças. Temiam mimá-las. O movimento de Branden chegou ao auge nos Estados
Unidos em 1986, quando o então governador da Califórnia, George Deukmejian,
assinou uma lei criando um grupo de estudos de autoestima. Os pesquisadores
deveriam descobrir como as escolas e as famílias poderiam estimulá-la.
Os pais reuniram esses dois elementos – o desejo de ver o filho
se dar bem na vida e a ideia de que é preciso estimular a autoestima – e
fizeram uma tremenda confusão. Na ânsia de criar adultos competentes e livres
de traumas, passaram a evitar ao máximo criticá-los. O elogio virou obrigação.
Para fazer com que as crianças se sintam bem com elas mesmas, muitos pais
elogiam seus filhos até quando não é necessário. O resultado é que eles começam
a acreditar que são bons em tudo e criam uma imagem triunfante e distorcida de
si mesmos. Como distinguir o elogio bom do ruim? O exemplo mais comum de elogio
errado, dizem os psicólogos, é aquele que premia tarefas banais. Se a criança
sabe amarrar o tênis, não é necessário parabenizá-la por isso todo dia. Se o
adolescente sabe que é sua obrigação diária ajudar a tirar a mesa, diga apenas
"obrigado". Não é preciso exaltar sua habilidade em dobrar a toalha.
Os elogios mais inadequados são feitos quando não há nada a elogiar. Se o time
de futebol do filho perde de goleada – e o desempenho dele ajudou na derrota –,
não adianta dizer: "Você jogou bem, o que atrapalhou foi o gramado
ruim". Isso não é elogio. É mentira.
Para piorar, um grupo de psicólogos afirma agora que a premissa
fundamental do movimento da autoestima estava errada. "Há poucas e fracas
evidências científicas que mostram que alta autoestima leva ao sucesso escolar
ou profissional", diz Roy Baumeister, professor de psicologia da
Universidade Estadual da Flórida (EUA). Ele é responsável pela mais extensa e
detalhada revisão dos estudos feitos sobre o tema desde a década de 1970.
Descobriu que a autoestima alta é provocada pelo sucesso – não é causa dele.
Primeiro vêm a nota boa e a promoção no trabalho, depois a sensação de se
sentir bem – não o contrário. "Na verdade, a autoestima elevada pode ser
muitas vezes contraproducente. Ela produz indivíduos que exageram seus feitos e
realizações". Outra de suas conclusões é que o elogio mal aplicado pode
ser negativo. "Quando os elogios aos estudantes são gratuitos, tiram o
estímulo para que os alunos trabalhem duro", afirma.
Com uma visão distorcida de suas qualidades, com dificuldade
para lidar com as críticas e aprender com seus erros, muito jovens narcisistas
não conseguem se acertar em nenhuma carreira. Outros vão parar na terapia.
Esses jovens acham que podem muito. Quando chegam à vida adulta, descobrem que
simplesmente não dão conta da própria vida. Ou sentem uma insatisfação
constante por achar que não há mais nada a conquistar. Eles são
estatisticamente mais propensos a desenvolver pânico e depressão. Também são
menos produtivos socialmente. Em terapia desde os 15 anos, Priscila Pazzetto
tem hoje 25 e não hesita em dizer que foi e ainda é mimada. "Uma vez pedi
para minha mãe me pôr de castigo, porque não sabia como era", afirma. Os
pais se referem a ela como "nossa taça de champanhe", a caçula de
três irmãos que veio brindar a felicidade da família num momento em que seu pai
lutava contra um câncer. "Nasci no Ano-Novo. Quando assistia às chuvas de
fogos na TV, meus pais diziam que aquilo tudo era para mim, para comemorar meu
aniversário", diz Priscila. Quando cresceu, nada disso a ajudou a terminar
o que começava. Tentou inglês, teatro, tênis, karatê, futebol, jiu-jítsu e
natação. Interrompeu até o hipismo, pelo qual era apaixonada. Estudou em 7
colégios particulares de São Paulo e, com frequência, seu pai precisou
interferir para que ela passasse de ano. Passou em 3 vestibulares, mas não
concluiu nenhum curso superior. "Simplesmente não me sinto motivada a ir
até o fim", afirma. Ainda morando com os pais, Priscila acaba de fazer um
curso técnico de maquiagem e diz que arrumou emprego na butique de uma amiga.
Tenta começar de novo.
Os piores resultados vêm da criação de pais negligentes. Eles
não são exigentes, não impõem limites e nem estão abertos a ouvir as demandas
dos filhos. Segundo pesquisas brasileiras – com amostras pequenas, que não
devem ser tomadas como definitivas –, esse é o estilo parental que predomina no
país nos últimos anos. Quando se fala em estilo negligente de criação, isso não
quer dizer que a criança está abandonada e não receba o suficiente para suprir
suas necessidades materiais e de afeto. O problema é mais sutil. Com medo de
parecer repressores, esses pais hesitam em impor limites. "É uma
interpretação errônea dos modelos educacionais propostos a partir da década de
1970. Eles pregavam que a criança não deveria ser cerceada para que pudesse
manifestar todo seu potencial", diz Claudete Bonatto Reichert, professora
do Departamento de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil.
"Provavelmente, a culpa que os pais sentem por trabalhar fora leva a
isso".
Se parece difícil implantar
em sua casa o modelo dos pais com autoridade, ainda há outra esperança. Nem
todos concordam que os pais sejam totalmente responsáveis pela formação da
personalidade dos filhos. A psicóloga britânica Judith Harris, de 74 anos,
ficou famosa por discordar do tamanho da influência dos pais na criação dos
filhos. Para ela, se os filhos lembram em algo os pais, não é graças à
educação, mas à genética. "Os pais assumem que ensinaram a seus filhos
comportamentos desejáveis. Na verdade, foram seus genes", afirma. O resto,
diz Judith, ficará a cargo dos amigos, a quem as crianças se comparam. É por
isso que ela acha inútil tentar dar aos filhos uma criação diferente da turma
do "eu me acho". "Houve uma mudança enorme na cultura",
afirma. "As crianças são vistas como infinitamente preciosas. Recebem
elogios demais não só em casa, mas em qualquer lugar aonde vão. O modelo de
criação reflete a cultura".
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