SÃO PAULO - José Valde Bizerra tem 62 anos e está
condenado a passar os próximos sete na cadeia. Tudo porque ofendeu o juiz José
Francisco Matos, da 9.ª Vara Cível de Santo André, no ABC Paulista, por e-mail
e nas redes sociais. Ele não concordava com uma decisão do magistrado em ação
contra o despejo de sua banca de jornal. Bizerra xingou o juiz de “vagabundo,
ladrão e corrupto”.
Bizerra foi dono de uma banca de jornal na Avenida
Queiroz Filho, em Santo André, por 30 anos. Em 2007, decidiu mudar o ponto para
um terreno ao lado de um cemitério. Assinou contrato de locação com os
proprietários da área mas, dois anos depois, sofreu ação de despejo. A
prefeitura alegou que a banca não poderia ser construída em local de interesse
público. Ele entrou com uma ação contra os proprietários e, em setembro de
2012, o juiz Matos deu sentença desfavorável ao jornaleiro. Ele apelou nas
instâncias superiores, mas também perdeu.
Irmãos de José ao lado de um dos filhos do
comerciante, que segura a foto do pai: jornaleiro tem direito ao semiaberto,
mas nunca usufruiu do sistema
© Fornecido por Estadão Irmãos de José ao lado de um dos filhos do
comerciante, que segura a foto do pai: jornaleiro tem direito ao semiaberto,
mas nunca usufruiu do sistema
Segundo os familiares, Bizerra ficou decepcionado
com a situação. De novembro de 2013 a julho de 2014, ele encaminhou e-mails
para a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Nos textos,
reclamava do juiz e fazia várias ofensas. “Estou enviando esse e-mail para
informá-lo que o considero um juiz ladrão, vendedor de sentença e que se aliou
a uma quadrilha”, diz um dos textos.
Matos prestou queixa contra o jornaleiro. Durante
as audiências, um acordo chegou a ser proposto, mas Bizerra não aceitou se
desculpar das ofensas, e o processo seguiu. O jornaleiro ainda mandou três textos
ofensivos para o e-mail pessoal do magistrado e postou vários textos contra
Matos em sua página no Facebook.
Mandado de prisão. Em 15 de
dezembro de 2015, a juíza Maria Lucinda Costa, da 1.ª Vara Criminal de Santo
André, condenou Bizerra a 7 anos e 4 meses de prisão, além de pagamento de
multa, porque, segundo ela, houve uma reiteração criminosa de oito delitos em
concurso material – cada e-mail foi considerado um crime individual.
Por ser considerado pela magistrada como uma
“ameaça à ordem pública”, pois afirmou que continuaria a mandar e-mails ao
magistrado, entre outros motivos, a juíza expediu mandado de prisão. Bizerra
foi preso no dia seguinte. Nunca mais saiu da cadeia.
Segundo o advogado Daniel Fernandes Rodrigues
Silva, que defende Bizerra, a sentença é “extremamente desproporcional ao crime
cometido”. “É inaceitável, nos dias de hoje, uma pessoa primária, de 62 anos,
ser mandada para a cadeia por crime contra a honra. É algo que foge à
normalidade do sistema Judiciário do País”, disse.
O antigo defensor de Bizerra impetrou dois habeas
corpus pedindo a liberdade do jornaleiro no TJ-SP. Os desembargadores da 7.ª
Câmara Criminal julgaram, no mérito, o pedido improcedente. Silva impetrou um
terceiro habeas corpus que, em liminar, também foi negado. A data para o
julgamento do mérito não foi marcada.
Segundo o advogado, Bizerra, embora condenado no
regime semiaberto, nunca usufruiu desse sistema. “Ele ficou em Santo André,
depois foi para Franco da Rocha, sempre em regime fechado, porque não havia vaga
no semiaberto. Em abril, a Justiça o transferiu para Tremembé (no Vale do
Paraíba). Porém, para sair durante o dia, ele precisa de emprego
registrado. Quem, aos 62 anos, consegue emprego com carteira assinada?”,
questionou Silva.
Bizerra é de uma família com mais oito irmãos, é
divorciado e tem três filhos. Josefa Cristina Bizerra, de 46 anos, não se
conforma em ver o irmão mais velho atrás das grades. “Um homem trabalhador vai
para a cadeia por um crime contra a honra, porque ficou indignado com um juiz.
Isso não é justo”, disse.
Mesma cela. Para piorar o
drama, em dezembro, outra irmã de Bizerra, Fátima, teve a casa invadida. Ela
foi agredida e ameaçada de morte. Dois adolescentes foram apreendidos e Yuri de
Paula foi preso. Ele acabou na mesma cela de Bizerra.“O ladrão começou a contar
a história do roubo. Quando citou o nome da nossa irmã, o José foi tirar
satisfação. Para piorar, os colegas de cela ficaram do lado do criminoso”,
contou Josefa. Bizerra teve de ser isolado, no mesmo presídio.
Para o presidente da Comissão de Direito Penal da
OAB-SP, Renato de Mello Jorge Silveira, que também é professor titular em
Direito Penal da USP, analisando o caso em tese, seria mais razoável considerar
que houve crime continuado, ou seja, os e-mails mandados por Bizerra serem
apontados em um único crime, com uma única pena. “Não é possível dizer que
houve equívoco na sentença, mas uma leitura mais dura do que a prudência
recomenda.”
Para o criminalista Rodrigo Sanchez Rios, que é
professor em Direito Penal na graduação e pós-graduação da PUC-PR, a pena é
desproporcional ao crime. “Essa sentença mostra o uso desmedido da norma penal
para buscar restabelecer o equilíbrio normativo alterado pelas ofensas do réu.
Não é com pena privativa de liberdade que se pacificam conflitos privados.”
Recorrente. O juiz José
Francisco Matos informou, por meio de nota, que pediu a abertura de mais duas
ações criminais contra José Valde Bizerra, pois o réu – mesmo depois de citado
e interrogado no processo que o condenou – não parou de ofender o magistrado.
“Ele não cessou sua atividade criminosa, passando
inclusive a enviar e-mails para a minha conta pessoal, bem como postando
manifestações, todas de caráter ofensivo e criminoso, em rede social”, afirmou.
Matos disse também que apresentou queixa-crime
contra Bizerra por entender que as ofensas foram praticadas enquanto ele
exercia sua função pública de magistrado.
A juíza Maria Lucinda Costa, que condenou Bizerra,
não foi localizada para comentar o caso. Ela e Matos trabalham no mesmo prédio
do Fórum Criminal de Santo André.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) informou
que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional impede que os magistrados se
manifestem sobre processos que estão julgando. Em nota, a Associação Paulista
de Magistrados (Apamagis) disse que “a livre convicção do juiz deve ser sempre
preservada, assim como o direito ao contraditório e ampla defesa, o que foi
observado no caso em questão”.
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